A Constituição estabelece que as Medidas Provisórias (MPs), cuja
proposição é prerrogativa exclusiva da Presidência da República,
quando encaminhadas para aprovação do Congresso Nacional precisam,
antes do início da discussão de seu mérito, passar por uma comissão
especial mista de senadores e deputados, criada, a cada caso, com a
finalidade específica de examinar a chamada admissibilidade do
projeto, ou seja, decidir se a medida que o chefe do governo está
propondo - e que entra em vigor imediatamente - preenche as
indispensáveis precondições de urgência e relevância.
Afinal, as MPs foram criadas para que o presidente da República possa
legislar - o que só é admissível, justamente, havendo urgência e sendo
relevante o caso - ad referendum do Congresso.
Mas, desde 2001, depois que aprovaram o texto constitucional em vigor
relativo ao assunto, os legisladores decidiram, tacitamente, que a
lei, ora a lei, é uma coisa muito relativa e que nem sempre precisa
ser acatada.
Ficou combinado, portanto, que, se o Executivo quer, é porque a
matéria deve ser mesmo urgente e relevante - e então não é necessário
perder tempo com comissões especiais que, além de tudo, dão um
trabalho danado, visto que, só nos últimos12meses, foram encaminhadas
ao Congresso 35 MPs.
Para o Executivo, tudo bem, é claro. Do Planalto nunca se ouviu uma
queixa. Até porque, com a inexistência de comissões que eventualmente
podem cismar que alguma MP trata de assunto rotineiro e banal, o
governo tem uma instância a menos com a qual negociar projetos.
O Judiciário, por sua vez, estava quieto no seu canto até que foi
obrigado, dias atrás, a se manifestar sobre a constitucionalidade de
uma MP convertida em lei - a que criou o ICM-Bio. E os ministros do
STF, por 7 votos a 2, anunciaram então o óbvio: a lei era
inconstitucional, porque, na tramitação pelo Parlamento, a MP
correspondente não passou pelo crivo da comissão mista, em claro
descumprimento do preceito constitucional. A partir dessa decisão do
STF, as 460 MPs editadas nos últimos 12anosetodaalegislaçãoderivada
seria suscetível de ter sua constitucionalidade questionada em juízo.
Entre elas, por exemplo, as MPs que criaram o Bolsa-Família, o Minha
Casa, Minha Vida e o Brasil sem Miséria.
Menos de 24 horas depois, dando-se conta do caos que poderia estar
criando, o STF voltou atrás, liberou a MP que provocara toda a
confusão e determinou que a exigência constitucional terá de ser
cumprida...daí para a frente.
Isso contrariou a elite dos laboriosos parlamentares governistas.
Afinal, a decisão do STF - por mais camarada que tenha sido - obriga a
formação de comissões mistas que terão de decidir se o texto subscrito
pelo presidente da República tramita ou não tramita. Imediatamente, a
liderança do governo partiu para o ataque, com argumentos de
embasbacar. Em suas últimas horas como líder do governo na Câmara, o
deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) foi lapidar: "Eu acho que o
Supremo tomou uma decisão de reavivar uma coisa que era lei de letra
morta". E acrescentou, tomando a liberdade de fazer uma leitura
própria do texto constitucional no que diz respeito à tramitação das
MPs: "A Constituição não obriga, ela estabelece um rito".
No dia seguinte, o novo líder na Câmara, Arlindo Chinaglia, não
destoou. Manifestou, desde logo, a opinião de que a tramitação das MPs
nos últimos 12 anos tem sido "absolutamente legal e constitucional". E
admitiu suas limitações como exegetada Carta Magna: "Não posso
entender onde é que estaria o problema ao não se discutir as MPs em
uma comissão mista e você discuti- la em plenário, inclusive a
admissibilidade". O problema, já que o deputado quer saber, é que a
Constituição é clara, no parágrafo5.ºdoartigo62:"Caberá à comissão
mista de deputados e senadores examinaras medidas provisórias e sobre
elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada,
pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional".
As leis podem - e às vezes devem - ser alteradas. Mas precisam, antes
de mais nada, ser respeitadas.
Legisladores deveriam saber disso.