Política
Ligações perigosas Miriam Leitão
No fim de agosto, o gerente de risco da Sadia fez uma notificação alertando para o alto risco das operações, apostando que o dólar não subiria. O papel não foi à diretoria. Em 15 de setembro, o Lehman Brothers quebrou. O administrador do Fundo de Harvard percebeu que tinha apenas 12% de dólar em carteira. O que liga estes fatos? O mundo globalizado tem conexões que a razão desconecta.
Administradores de fundos do mundo começaram, no início desta crise, a comprar dólar, por perceberem que o balanço de moedas em carteira tinha ficado desequilibrado.
Foi o que se fez no Fundo de Harvard.
Várias diretorias de empresas no Brasil se deram conta, nas últimas semanas, que tinham se exposto a um grau maior de risco cambial de que tomaram conhecimento, ou consciência.
Quando o Lehman Brothers quebrou, iniciou-se uma onda de pânico. Foi naquele momento que se percebeu que era falsa a idéia do “grande demais para quebrar”, que era vã a ilusão de que o Fed tivesse um plano de vôo e que era enganosa a confiança que o mundo depositava nas autoridades americanas. Hoje já se sabe que Fed e Tesouro americano voam às cegas.
Fios desencapados foram se conectando nas últimas semanas, e na mesma direção: todos querem dólar, todos querem proteção, todos fogem do que acham arriscado. Investidores institucionais, fundos de investimento e grandes empresas bateram asas ao mesmo tempo em direção ao maior emissor de títulos do mundo: o Tesouro americano.
Ele é também o mais encalacrado, com sua dívida de US$ 10 trilhões, seu rombo fiscal. Mas é para lá que voaram os capitais do mundo inteiro, com a mesma precisão geométrica das aves migratórias. O dólar começou a se valorizar no mundo todo, provocando o mais irracional dos efeitos da crise atual: o país que inventou a crise, e que a sente mais fortemente, é o mesmo país da moeda que mais se valoriza.
Foram cinco anos de dólar em queda, de bolsas subindo, de emergentes recebendo capital, de alta de commodities. Não há nada mais arriscado do que uma longa bonança. Copiando a idéia do Fim da História, no mercado brasileiro alguns economistas enunciaram o fim do risco. Tudo dava certo, não interessava que erros o governo cometesse.
Todo lançamento inicial de ação (IPO) era sempre um sucesso, não importava que viabilidade tivesse uma empresa.
Empresa de petróleo sem um barril de reserva captava bilhões no lançamento; empresas imobiliárias do setor de vendas, sem ativos, abriam capital com sucesso; vendedores de etanol futuro — sem terra, sem usina — faziam road show no exterior e voltavam abarrotados de capital. Tudo parecia dar certo, tudo parecia que seria para sempre assim.
As empresas exportadoras começaram a ir além do costumeiro. O normal é vender antecipadamente o dólar da exportação ainda não feita através do tradicional ACC, adiantamento de contrato de câmbio. Mas os bancos passaram a oferecer outros produtos. Vários tipos.
Alguns deles, financiamento em moeda brasileira, em que as taxas de juros seriam menores se o crédito fosse casado com opções de câmbio.
As empresas foram aos poucos se expondo de novo a mais e mais risco cambial.
O mesmo risco que fustigou tão duramente a economia em 1999. Só que elas acharam que nada como aquilo aconteceria. De fato, cada crise é diferente da outra.
As economias se protegem contra crises passadas, das quais já conhecem a dinâmica.
E se expõem a riscos novos e, aí, criam crises novas. Os produtos financeiros que embutiam risco cambial se multiplicaram.
Alguns compreensíveis, porque atendiam à necessidade de cada empresa exportadora de fazer proteção contra oscilação da moeda. Outros foram ficando mais estranhos, mais rentáveis, mais perigosos.
As operações deram bastante dinheiro às empresas, nos bons tempos, e produziram um milagre: mesmo com dólar em queda, as exportações brasileiras cresceram e as empresas exibiram vigor e saúde.
Agora chegou a conta. A Sadia reconheceu um prejuízo de R$ 760 milhões; a Aracruz, de R$ 1,95 bilhão; a Votorantim, de R$ 2,2 bilhões.
A dimensão dessa conta ainda não se sabe, mas ela está em aberto e assombrando o mercado brasileiro. Quanto mais o dólar sobe, maior o perigo.
Mais dúvidas surgem sobre as empresas, mais as ações caem. A ação da Aracruz, que chegou a R$ 15 há um ano, caiu até agosto para R$ 8 e, na sexta-feira, estava a R$ 2,60.
A Sadia foi a primeira a dar o sinal. Agora, a empresa tenta se organizar. Não fosse essa confusão, o momento seria maravilhoso para todas as exportadoras que queriam tanto que o dólar subisse. A Sadia está com seis fábricas para inaugurar.
Hora de aumentar a produção e a exportação.
Depois da quebra do Lehman, os bancos americanos pararam de emprestar, as linhas de crédito secaram completamente. Sem elas, não é possível fazer as operações de adiantamento de câmbio. A bicicleta — em que os exportadores vendiam num dia o dólar da exportação de três meses depois — parou bruscamente.
Isso secou o mercado de dólar, e as empresas, vendidas em dólar, tiveram que correr para comprar, quando o natural era que fossem vendedoras.
A próxima fábrica da Sadia será inaugurada este mês, em Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. Poderia ser um momento de festa, mas é uma hora de apreensão. Só dorme tranqüilo o governo, que desconhece como são milhares e complexas as conexões do sistema nervoso da economia globalizada. Um banco quebra em Wall Street e pode afetar uma fábrica de frangos em Mato Grosso.
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