O projeto Ficha Limpa, iniciativa popular de lei que chegou à Câmara
no fim de setembro do ano passado, afinal aprovado, sete meses e 12
dias depois, é um avanço ou apenas uma ilusão que pode se tornar um
retrocesso?
Da proposta original, com 1,5 milhão de assinaturas — às quais se
agregou mais outro milhão, diretas ou virtuais —, foram alterados dois
pontos principais: o que tirava a possibilidade de candidatura para
condenados por crimes graves em primeira instância, por um juiz, e a
impossibilidade de recurso para obter a candidatura, ainda que sub
judice.
Essas duas alterações restringiram o alcance e a eficácia da nova lei,
pois é evidente que todos os condenados por órgão colegiado vão
recorrer.
O deputado Chico Alencar, do Rio, lembra que o PSOL votou pela
supressão dessa parte do texto, contra a possibilidade de recursos.
Ele considera que é muito mais visível para o eleitorado um candidato
que está nessa condição por mandado de segurança, por exemplo, que
sempre pode ser obtido, do que com base em comando da própria Lei das
Inelegibilidades.
"Apenas nós e o PV encaminhamos a favor da supressão desse adendo ao
projeto inicial. Somente 44 deputados votaram pela vedação do recurso
— além de nós, alguns do PV, do PDT e do PSDB".
Mesmo assim, o Movimento pelo Voto Consciente, uma das diversas ONGs
que fazem parte do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE),
considera um avanço importante a aprovação da nova lei na Câmara.
Rosangela Giembinski, da direção da ONG, lembra que "nos municípios,
nos estados, tem muita gente que vai ser afetada por esse projeto".
O Voto Consciente tem um trabalho em mais de 200 municípios, e essa
amostragem indica que o projeto vai ter um efeito muito grande nas
câmaras municipais.
"É grande o número de políticos que já exerceram cargos públicos que
ficam impedidos de se candidatar", afirma Rosangela Giembinsky.
Uma maneira de amenizar os efeitos da mudança que permite o recurso
foi incluir na lei que, mesmo obtido o efeito suspensivo, o julgamento
do caso terá prioridade.
Essa era uma reivindicação do Voto Consciente, que entrou com uma
representação na Justiça de São Paulo pedindo prioridade para o
julgamento de crimes de políticos.
Rosangela Giembinsky relembra, ainda abismada, a resposta que
receberam: "Isso seria conceder um privilégio aos políticos".
O autor da emenda que concede prioridade, o deputado José Eduardo
Martins Cardozo, tão desiludido com a atividade política que não
pretende voltar a se candidatar, alega que os "em evidente conflito
com a lei e com a moralidade pública" ficarão constrangidos com a
situação, e o costume de protelar as decisões da Justiça perderá
força.
Houve outras emendas, classificadas pelo deputado Chico Alencar de
"estertores da resistência" ao projeto, e que foram destruídas pela
forte pressão do MCCE e da cidadania internauta: queriam tirar crimes
graves e dolosos contra meio ambiente e saúde pública, crimes
eleitorais e outros.
Do jeito que a lei foi aprovada, todos os que renunciaram ao mandato
para fugir de cassação não poderão se candidatar: Joaquim Roriz (PSC),
Paulo Rocha (PT), Valdemar Costa Neto (PR), Severino Cavalcanti (PP) e
José Borba (PMDB) são alguns mais notórios.
Há vários deputados com condenação em colegiado estadual, preocupadíssimos.
O deputado Paulo Maluf (PP-SP), por exemplo, foi condenado pela
7aCâmara de Direito Público do TJ-SP por improbidade administrativa.
A brecha do recurso e do efeito suspensivo serviu, justamente, para
que eles não opusessem barreiras totais à aprovação da matéria.
Foi um acordo do relator, deputado José Eduardo Cardozo, com o próprio
PT, que resistia muito, e sobretudo com o PMDB.
Outros, não deputados também ficam inelegíveis por oito anos, como os
exgovernadores Jackson Lago (PDT-MA) e Marcelo Miranda (PMDB-TO).
Por tudo isso, outra batalha dos "contra" será, além de protelar ao
máximo no Senado, questionar no Supremo Tribunal Federal a validade da
lei complementar já para estas eleições.
A vereadora do Rio Andrea Gouvêa Vieira, do PSDB, teme que as
limitações impostas ao projeto acabem gerando um retrocesso na luta
contra a corrupção, dando a impressão de que tudo foi resolvido.
Ela teme sobretudo que os partidos políticos, com base na legislação,
se sintam cobertos para dar legenda a candidatos "ficha suja", que,
não sendo atingidos pela legislação aprovada, posarão de "ficha
limpa".
O deputado Chico Alencar concorda: "Não podemos vender ilusões e
dizer, como ouvi ontem aqui na Câmara, que 'acabou a corrupção, e que
agora o Brasil só terá eleições limpas' e candidaturas cândidas,
puras, maravilhosas.
Muitos 'fichas escondidas', sujíssimas, seguirão sendo candidatos".
Também Rosangela Giembinsky, do Movimento Voto Consciente, é da mesma
opinião: "Não acho que este projeto resolve todas as questões. Sabemos
que precisamos de uma Justiça mais ágil, existem outras medidas que
vão contribuir para que avancemos ainda mais. Mas que a nova lei é um
avanço, isso é indiscutível", diz ela.
Agora, o projeto e as dificuldades estão no Senado, que não tem o
mecanismo da Câmara de votar em sessões extraordinárias outros
projetos que não medidas provisórias.
O líder do governo, senador Romero Jucá, já sinalizou que, por ele, o
projeto não terá encaminhamento de urgência.
Tudo indica que ele será o líder da protelação da análise do projeto
no Senado, se não tentar simplesmente derrubá-lo.