O BRASIL DA INOVAÇÃO
Nos últimos dez anos, surgiram no país pólos de
tecnologia da informação com relevo internacional.
Um estudo mostra onde eles estão e o que produzem
Marcos Todeschini e Renata Betti
O Brasil costuma ser lembrado como um grande produtor de soja, açúcar, aço. Nem só por suas commodities, no entanto, o país tem espaço no mercado internacional. A tecnologia, área em que até pouco tempo atrás os brasileiros nada tinham a oferecer, começa a despontar. Os avanços recentes são notáveis – fenômeno que uma nova pesquisa ajuda a dimensionar. Segundo o levantamento, nos últimos dez anos surgiu no país um eficiente conjunto de pólos de tecnologia da informação (TI), um dos setores vitais da economia contemporânea. Eles estão unidos pelo mesmo critério de excelência: todos têm a apresentar uma ou mais invenções de natureza diferente, pelas quais sobressaem fora do país. São sete pólos que, juntos, faturam 4 bilhões de dólares por ano, exportam para setenta países e abrigam 3 700 Ph.Ds. esparramados por 1 000 empresas de tecnologia da informação. Esse circuito, ao qual lançou luz o trabalho conduzido pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, reúne, ainda que em escala modesta, o básico da fórmula que funcionou no Vale do Silício, meca da TI mundial: boas universidades, alta concentração de cérebros, alívio nos impostos para as empresas de tecnologia e uma cultura que valoriza a inovação. Resume o especialista Antenor Corrêa, coordenador da pesquisa: "Nesses pólos, as pessoas conseguiram se tornar competitivas produzindo aquilo que mais adoram: tecnologia".
É verdade que os números absolutos ainda não deixam o Brasil em boa situação na comparação internacional. O país responde por apenas 2% do faturamento global do setor e ocupa a décima segunda posição no ranking mundial de tecnologia da informação. O que chama atenção no caso brasileiro é o rápido crescimento da área de TI. Enquanto ela aumenta no mundo ao ritmo de 6% ao ano, no Brasil a velocidade beira os 12%, sobre um faturamento anual de 22 bilhões de dólares. Dois fatores explicam isso. Com o avanço da economia, as fábricas brasileiras, até recentemente pouco automatizadas, passaram a demandar serviços de TI em busca de maior produtividade. Um segundo diferencial do país, este em relação aos demais emergentes, diz respeito ao seu poder de atrair multinacionais – sobretudo porque os salários dos especialistas brasileiros em TI são 10% mais baixos do que a média mundial. Além de disseminarem conhecimento técnico, as empresas estrangeiras fomentam a criação de outras, locais, para lhes prestar serviços. Diz Roberto Moschetta, diretor de um dos pólos apontados pela pesquisa, em Porto Alegre: "Sem a Dell, não teríamos a mesma cultura tecnológica". Primeira das multinacionais a se instalar lá, em 2003, a Dell é uma das maiores fabricantes de computadores do mundo.
Parte do atraso brasileiro na área de TI se deve, justamente, ao fato de as empresas estrangeiras, tradicionalmente na dianteira das pesquisas, terem custado a aportar no país. O que as espantava era a Lei de Informática da década de 70. Ela proibia as multinacionais de fabricar computadores no Brasil, restrição que foi derrubada apenas depois de vinte anos, em 1992. A isso, soma-se a demora brasileira em formar mão-de-obra especializada. A primeira faculdade de ciência da computação no país apareceu em 1968, em Campinas, e vivia às moscas, tal era o marasmo do setor. Dez anos atrás, enquanto a produção nacional era irrisória, a Índia já despontava como forte fornecedora de serviços de TI e, no Vale do Silício, criava-se a metade de todas as grandes inovações tecnológicas do mundo.
Ao ritmo do crescimento atual, a previsão é que o Brasil alcance em três anos a quinta posição no ranking mundial de tecnologia da informação, segundo relatórios internacionais. Para isso, é preciso formar mais gente especializada – o déficit de mão-de-obra chegou a 30 000 pessoas neste ano – e aumentar o nível de conhecimento de inglês, idioma falado por apenas 1% da população. Pesa em favor das previsões otimistas uma recente medida tomada pelo governo federal, que reduziu à metade os impostos sobre as exportações de TI. O mesmo que fez a Índia quinze anos atrás, antes de se tornar a maior exportadora dessa tecnologia no mundo. Os sete pólos citados nesta reportagem têm ainda dimensões modestas, mas revelam que já surge, no Brasil, uma nova cultura. Ela está presente em lugares onde tecnologia é o assunto à mesa do restaurante e a razão para milhares de jovens Ph.Ds. vararem madrugadas em laboratórios. É também o que passou a atrair estrangeiros para cenários pouco turísticos. Em todas essas cidades brasileiras, eles já encontram inventos impossíveis de achar em outra parte do mundo. É, sem dúvida, um bom começo.
Surfistas com Ph.D.
Os jovens Ph.Ds. que circulam pelo Parque Alfa, o maior pólo de tecnologia de Florianópolis, pertencem a um grupo com hábitos aparentemente inconciliáveis: raramente são vistos longe de um computador, mas, sempre que podem, estão sobre uma prancha de surfe. Quem leva esse estilo de vida é gente como o empresário Claudio Grando, 36 anos, dono de um negócio que, aberto por ele e um colega de faculdade em 1996, já exporta para 5 000 empresas em trinta países. O sucesso se deve a um software capaz de calcular com precisão milimétrica a quantidade de tecido necessária para fabricar uma peça de roupa, invenção que reduz o desperdício a zero. É um dos inúmeros softwares para a indústria criados no pólo. "Trata-se de uma grande comunidade de pessoas que ambicionam o mesmo: ser reconhecidas por um grande invento tecnológico", resume Claudio. Todas as empresas do pólo surgiram a partir de uma incubadora ligada à Universidade Federal de Santa Catarina, que presta aos recém-formados uma consultoria fundamental à implantação de seus primeiros negócios na área de TI. Coube ao governo estadual impulsioná-las ao proporcionar infra-estrutura e alívio nos impostos. Funcionou. Desde 1996, quando o pólo surgiu, outros seis centros de TI se esparramaram por Florianópolis. Juntos, eles já respondem por 34% do PIB da cidade. A tecnologia tornou-se a principal fonte de renda local e levou a uma mudança no cenário de praias. É lá, afinal, que jovens Ph.Ds. vindos de todas as regiões do país dividem as ondas com os surfistas veteranos. |
Tecnologia ao som de forró
O que faz indianos, franceses e americanos escolher Campina Grande, cidade encravada no sertão da Paraíba, para viver? O engenheiro americano Hunter Hagewood, 33 anos, que em 2003 chegou lá com a mulher e os dois filhos, explica: "Moramos num lugar onde sobram empregos de alto nível e temos a chance de experimentar uma autêntica vida brasileira". Hagewood e os outros estrangeiros podem não demonstrar desenvoltura ao dançar forró e invariavelmente consideram a buchada de bode, prato típico da região, "muito estranha" – mas estão perfeitamente integrados à rotina da cidade. A presença deles é decisiva para que Campina Grande tenha se tornado o lugar do país com o maior número proporcional de Ph.Ds. – um para cada 669 habitantes, cinco vezes a média brasileira. Além de terem boas chances de emprego, esses doutores vivem no meio do sertão porque ali está a Universidade Federal de Campina Grande, uma das melhores do mundo em TI. Figura entre as poucas dedicadas a avançar na área de computação quântica, tecnologia que vai transformar os computadores em máquinas infinitamente mais rápidas e capazes. Tudo no pólo gravita em torno da universidade, que não apenas fornece mão-de-obra bem preparada, como participa, ela própria, das pesquisas desenvolvidas pelas empresas. Vinte anos atrás, foi da faculdade a idéia de lançar uma incubadora para ajudar os estudantes a montar seus negócios de TI. O pólo aumentou com os incentivos fiscais concedidos pelo governo estadual. A Light Infocon tornou-se uma das maiores empresas da região. Foi lá que se originou uma das invenções que mais atraem para Campina Grande grupos estrangeiros interessados em comprar. Trata-se de um software de processamento de dados que já ajuda em investigações conduzidas pela Interpol e pelas polícias de mais seis países. Resume o dono da empresa, Alexandre Moura, 47 anos: "As pessoas vinham para o sertão ver festa de São João. Hoje, buscam inovação". |
Lugar de game é aqui
Jovens de sandálias Birkenstock e bermuda cáqui são os criadores de alguns dos games brasileiros de maior sucesso no exterior. Eles trabalham na Jynx Playware, empresa que já exporta para uma dezena de países, como Finlândia e Japão. Aberta em 2001 por um grupo de universitários, funciona no Porto Digital, no Recife, onde é vizinha de outras 116 empresas de softwares. Elas ficam numa região da cidade que andava decadente e, oito anos atrás, foi restaurada pelo governo estadual com o objetivo de implantar ali um pólo. A especialidade local são os jogos para computador ou celular. "Aqui é todo mundo aficionado dos games e está ganhando dinheiro com isso", resume o dono da Jynx, Frederico Vasconcelos, 35 anos, com olheiras de varar a noite disputando partidas on-line. Essa e as demais empresas foram atraídas, antes de tudo, por generosos incentivos fiscais concedidos pelo estado. É o caso da Motorola, que, atuando em mais de cinqüenta países, decidiu instalar seu único laboratório de testes e desenvolvimento de ferramentas para celular no pólo do Recife. Explica a diretora de pesquisa da empresa, Rosana Fernandes: "Além dos impostos, viemos atrás da boa infra-estrutura e da mão-de-obra especializadíssima". A inusitada adoração local pelos games tem uma razão de ser. Treze anos atrás, a Universidade Federal de Pernambuco incluiu a disciplina Projeto de Desenvolvimento de Jogos entre seus cursos. É uma das mais populares entre os estudantes – e hoje garante a existência de um negócio rentável e promissor. |
"Hello, posso ajudar?"
Se alguém de uma empresa nos Estados Unidos precisar de ajuda por telefone para resolver uma pane no computador, são grandes as chances de ouvir do outro lado da linha o inglês com sotaque do analista de sistemas Sidney Varoni ou de um de seus colegas. "O pré-requisito para entrar na equipe é adorar tecnologia", diz Sidney. Os jovens especialistas ficam em Hortolândia, cidade a 120 quilômetros de São Paulo, e trabalham na IBM, que mantém no Brasil a maior prestadora desse tipo de suporte técnico a companhias americanas e européias. Dona do terreno, a IBM aluga espaços para outras oito empresas de TI. Juntas, elas exportam 400 milhões de reais por ano em softwares e serviços e estão entre as grandes empregadoras dos Ph.Ds. formados na Universidade de Campinas, próxima dali. A idade média dos funcionários, por volta dos 25 anos, faz o lugar se assemelhar a um câmpus universitário – só que americano, dado que o idioma predominante é o inglês. A começar pelo nome do pólo, Tech Town, que surgiu em 2003, amparado por uma política de incentivos fiscais da prefeitura. Como a consultoria prestada aos estrangeiros funciona 24 horas, instalou-se ali uma minicidade, com quadra de esportes, piscina, livraria e até um heliporto. Toda semana, desembarcam por lá dezenas de executivos estrangeiros. O engenheiro Alcântaro Jovanco, 37 anos, se incumbe da missão de recepcioná-los: "Eles sempre fecham negócio". |
O quartel da TI
Numa área de Porto Alegre onde cinco anos atrás só havia prédios abandonados de um antigo quartel, convivem hoje centenas de Ph.Ds. empregados por algumas das melhores empresas de softwares do país, que ali decidiram montar suas sedes. Nesse pólo, até no restaurante onde os especialistas se reúnem as conversas giram em torno de chips e circuitos eletrônicos. No jargão local, repleto de referências à tecnologia, "inovação no cinema" significa a estréia de um filme. É nesse ambiente que o pesquisador Rafael Ramos, 36 anos, doutor em microeletrônica, passa algo como doze horas por dia. Ele, que trabalhou cinco anos numa empresa do Vale do Silício, decidiu retornar ao Brasil motivado por uma proposta que julgou irrecusável: "Voltei para compor a equipe da primeira empresa de microeletrônica do país". A Ceitec, uma das maiores do pólo, passará a fabricar, em 2009, chips de aparelhos eletrônicos, como celulares e TVs. Só há dez dessas fábricas no mundo, nenhuma delas na América Latina. É uma descoberta feita ali, no entanto, que tem atraído americanos e europeus para Porto Alegre. Eles vêm atrás de um chip que, alojado na orelha dos bois, monitora em tempo real seu crescimento – automatização decisiva para reduzir custos. O fato de 42 empresas de TI, entre as quais filiais de gigantes como HP e Microsoft, terem se reunido todas num mesmo lugar se deve, basicamente, a uma oferta feita pela PUC, atual proprietária do terreno. A universidade lhes ofereceu, de graça, prédios com boa infra-estrutura e, em troca, exigiu que investissem cerca de 1% do faturamento em pesquisa acadêmica. Resultado: as empresas já financiam 85% da pesquisa na universidade e se beneficiam diretamente dela. Ciclo virtuoso que faz do velho quartel um centro de produção de tecnologia de altíssimo nível. |
Produtividade num cenário alpino
Poucos lugares no Brasil têm um índice de desenvolvimento humano (IDH) tão alto quanto Petrópolis, cidade serrana a 65 quilômetros do Rio de Janeiro. Na década de 80, foi esse o cenário que motivou milhares de pessoas a abandonar grandes cidades e abrir ali pequenos negócios. O fluxo migratório não cessou, mas o típico recém-chegado não se torna mais dono de pousada, e sim empresário de TI. Foi o que ocorreu com o empresário carioca Sergio Cavalcanti, 40 anos, que, no ano passado, deixou o escritório no Rio para alojar sua empresa em três bucólicos chalés. Em meio à decoração alpina, ele e mais sessenta funcionários produzem softwares para digitalizar jornais brasileiros e asiáticos, de modo que cheguem à internet e ao celular. "Bato à porta de meus vizinhos, tão aficionados de tecnologia quanto eu, e trocamos idéias o tempo todo", diz Sergio, referindo-se às outras 73 empresas de TI que compõem o pólo. Na maioria, elas se especializaram em criar softwares sob encomenda (e não em grande escala, como é mais comum nesse mercado). Começaram a chegar cinco anos atrás, atraídas por impostos mais baixos e pelo fato de a cidade ter universalizado a fibra óptica. Isso garantiu acesso à internet mesmo nos lugares mais improváveis, como o bosque onde trabalha com seu laptop o goiano Michel Esber, 30 anos. Ele é gerente executivo de uma empresa que cria e monitora sistemas de segurança para firmas em dezenove países. Antes, ficava em São Paulo, vida da qual Michel não tem saudade. "Ninguém aqui perde tempo com engarrafamento nem sofre de stress. Na serra, nossa produtividade aumentou." |
No trilho certo
Pouca gente sabe que num velho edifício de escritórios, no centro de Belo Horizonte, surgiram nos últimos anos 600 empresas de software. Algumas continuam lá. Outras se mudaram em busca de mais espaço, caso da MoIP, comandada por Leonardo Mendes, 26 anos, e dois ex-colegas de faculdade. O trio inventou um programa que simplifica as transações bancárias na internet e pode ainda ser instalado no celular e na TV digital. O software, que entre universitários do mundo todo recebeu um prêmio de inovação concedido pela Universidade do Texas, já é usado por 2.000 pessoas no Brasil. Curiosamente, foi criado por Leonardo como projeto de conclusão do curso de engenharia de automação. "Poderia ter ficado acumulando poeira na biblioteca, caso não tivesse recebido os incentivos certos", ele diz. O jovem empresário se refere à consultoria prestada pela incubadora de uma fundação ligada ao governo estadual, que, por sua vez, dá isenções fiscais às novatas na área de TI. O que também contribui para a efervescência do pólo é a proximidade com a Universidade Federal de Minas Gerais, onde os especialistas desenvolvem pesquisas para o mercado. Quem as encomenda é gente como o engenheiro Paulo Pinto, 48 anos, à frente de uma empresa cuja maior descoberta é um software capaz de detectar falhas mínimas em trilhos de trens. Reduz os custos de manutenção a um oitavo do valor – e já despertou a atenção dos estrangeiros. "Comecei a receber ligações internacionais de gente querendo comprar", comemora o engenheiro. |