Enquanto os Estados Unidos e a Europa se debatem para tentar escapar
da estagnação, aqui a discussão ganhou força após o Banco Central (BC)
cometer a "heresia" de reduzir meio pontinho na Selic. Foi um Deus nos
acuda! O debate ganhou novas cores pondo de um lado os guardiões da
inflação e de outro os desenvolvimentistas.
Ambos pecam, pois atribuem à Selic o poder mágico de controlar a
inflação. Será que controla? Não creio, mas vamos avaliar à frente.
1. Posições - Os guardiões da inflação, liderados pelo mercado
financeiro, veem inflação crescente devido ao que consideram excesso
da demanda em relação à oferta interna.
Para combater a inflação advogam a redução da demanda via elevação da
Selic. Se o BC não mantiver a taxa básica de juros em nível elevado,
perde a credibilidade e não ancora as expectativas dos formadores de
preços.
Para essa corrente o País não pode crescermaisde3,5%, pois fatalmente
seria rompido o teto da meta de inflação de 6,5%.
Os guardiões da inflação fazem uma verdadeira chantagem inflacionária
para pressionar o BC a manter a Selic elevada. São espertos, pois
apresentam argumentos de ameaça inflacionária e em seguida a solução
milagrosa da Selic, remédio falso por ser a maior taxa básica de juros
do mundo.
Isso é Kafkiano! A outra posição, agora defendida pelo governo, é de
que a inflação vai depender dos preços internacionais, que estão em
queda devido à crise, e a economia está patinando, o que reduz o
potencial de demanda. Nessa situação, a Selic pode cair para um nível
inferior ao atual, sem maiores problemas para a inflação.
Essa corrente defende que é possível manter a inflação dentro do
limite da meta, com um crescimento de 5% e defende estímulos à
economia.
A falha dessa posição é que a Selic só pode cair se a inflação externa
o permitir.
O governo só foi acordar recentemente para reduzir a Selic quando viu
que a economia estava indo para baixo sendo afetada pela crise em
expansão.
Poderia ter ativado os investimentos das empresas não elevando a Selic
cinco vezes neste ano passando-a de 10,75% para 12,50%. Errou, pois
também atribuiu à Selic o poder de controle da inflação.
2. Perspectivas da inflação - Prever a inflação está sujeito a erro
crescente quanto maior o período considerado.O mercado financeiro e o
BC preveem inflação acima da meta de 4,5% neste e no próximo ano. É
puro chute, mas é usado nas análises em debate.
Essas previsões falham mesmo para um mês à frente, como ocorreu de
junho a agosto de 2010, quando o mercado financeiro previu inflação de
0,4% em cada mês e ela foi zero.
A inflação vai depender, em boa medida, do resultado entre a queda dos
preços em dólares das commodities e o câmbio que depende da
insegurança gerada pela crise. Por enquanto o efeito câmbio está
superando a queda de preços das commodities em dólar, mas as previsões
apontam para estabilizar ao redor de R$1,70 a R$1,75, o que permitiria
redução nos preços das commodities em reais.
Em setembro o índice CRB, que mede os preços das commodities, caiu
10,7%, o maior tombo desde outubro de 2008, ápice da crise financeira
com a quebra do Lehman Brothers. A recessão na Europa e EUA pode pôr
fim a um ciclo exuberante de demanda aquecida e preços
estratosféricos. Tudo dependerá em grande parte da China e uma ampla
pesquisa feita pela Bloomberg apontou que a economia chinesa vai
desacelerar nos próximos anos para o ritmo de 5%.
Caso a inflação média mensal de outubro a dezembro fique em 0,49%, não
será rompido o teto da meta de 6,5%.
Existe essa possibilidade.
Embora o IPCA de setembro tenha sido de 0,53%, o IPC Fipe registrou
inflação de 0,25% e a cesta básica ficou mais barata.
Outro fato é que a inflação traz consigo o mais poderoso antídoto para
a redução do consumo, pois atua diariamente corroendo o poder
aquisitivo, que só poderá se recuperar parcialmente mais à frente.
3. Engodo da Selic - Nessa discussão o que chama a atenção é que os
dois lados usam a Selic para defender sua posição e ela não tem nada a
ver com o problema, pois não altera o preço dos alimentos,
transportes, habitação, preços internacionais, serviços, oferta de
crédito e valor das prestações, que explicam a evolução do IPCA.
Serve, no entanto, para desestimular os investimentos das empresas,
reduzindo a oferta futura, o que a distancia da procura. Assim, em vez
de atenuar a inflação a Selic a agrava.
É interessante notar mais um engodo usado para a Selic. Os guardiões
da inflação procuram espertamente confundir a Selic com a taxa de
juros da economia.
A distância entre elas é significativa. A taxa de juros à pessoa
física estava em 46,2% em agosto e a Selic em 12,5%, ou seja, 33,7
pontos acima. No caso do cheque especial, muito usado para ampliar o
consumo, estava em 188% ou 15 (!) vezes a Selic.
Outro engodo está no uso do conceito ultrapassado de taxa de juros
neutra (?) como sendo a mínima necessária para conter a inflação.
Esse conceito é usado como sendo a Selic a taxa de juros da economia e
o Brasil como sendo uma economia fechada, sem sofrer a influência dos
preços internacionais. Sem comentários! É interessante observar que
dada a distância entre a Selic e a taxa de juros do mercado, cada uma
segue o seu curso, podendo caminhar em sentidos opostos, como ocorreu
em 2010. Enquanto a Selic subiu dois pontos passando de 8,75% para
10,75%, a taxa de juros da pessoa física caiu 2,4 pontos passando de
43,0% para 40,6%.
O que ocorre internacionalmente é a prática de taxas de juros básicas
reais (excluída a inflação) negativas de 0,5% e 1,0%, respectivamente
para o grupo dos países emergentes e países desenvolvidos. E a taxa de
juros da economia é da ordem de 3% acima da básica. Assim, quando a
taxa básica é alterada há o reflexo na taxa de juros da economia. Na
China, por exemplo, a taxa básica é de 3% e a taxa de juros da
economia de 6%, a mesma da inflação.
4. Mudança - Parece que o governo felizmente acordou para o fato que a
inflação não depende da Selic. Embora não diga para não assustar mais
ainda o atônito e frustrado mercado financeiro, percebeu o engodo da
Selic.
Provavelmente irá voltara usar as medidas macroprudenciais -
abandonadas neste ano em prol da Selic - para regular o consumo ao
nível da expansão da massa salarial. Assim pode pilotar com eficácia
uma das pernas importantes do consumo, que é o crédito, agindo sobre a
inflação e o crescimento econômico.
A Selic poderá iniciar uma gradual redução até chegar ao nível dos emergentes.
Com isso reduz a especulação externa sobre o real, não distorce o
câmbio, a conta de juros cai pela metade com economia de R$ 120
bilhões (!) ou 3% do PIB. Melhora os fundamentos fiscais rumo ao
equilíbrio e torna possível a redução acelerada da relação dívida/PIB,
passando a brotar recursos para atender o déficit social e de
infraestrutura. O País engoliu esse engodo por mais de 20 anos! Bem
vinda a mudança.